domingo, 12 de abril de 2015

Vade Retro!



Os olhos turvos, sol na cara, gramado resplandecendo sob as chuteiras incansáveis de valorosos combatentes, cada um a representar uma parcela da massa sofrida da cidade operária – porque “cidade dormitório” é coisa de preguiçoso, aqui se trabalha, e sério. A jornada até Itaboraí (maldade de quem a chama de “São Gonçalo do Norte”) é aprazível, porém tensa: o Gonçalense estava prestes a encarar o afamado América, e ia ser o diabo. O mais famoso segundo time dos cariocas lidera seu grupo com folga, reciclava em seu plantel eternas promessas como Somália, Jean e Abedi, e ainda menosprezara o Tricolor Metropolitano, demonstrando desconhecer o adversário, como o fizera antes o Duque de Caxias, quando nos chamou de “PSG da roça”.

Antes de chegar ao Alzirão já se previa a magnitude do confronto, as ruas da cidade tomadas por veículos estrangeiros, a inédita fila imensa na bilheteria – o que me fez agradecer por ter em mãos o meu ingresso, comprado antecipadamente na sede. Lá dentro, o caldeirão já fervia a minutos do apito inicial, tanto pela clamorosa paixão dos gonçalenses quanto pelo sol, que parece se posicionar estrategicamente contra a cara do torcedor. Tinha gente no prédio ao lado, gente na concorridíssima laje atrás do gol (já chamada de “setor Norte Inferior do Alzirão”), gente no muro; todos queriam presenciar mais um passo largo do Gonçalense rumo à elite do futebol carioca.

Logo no começo, a estratégia do técnico Emanoel Sacramento se mostrou exitosa: lançamento em profundidade de Dyeguinho para o lateral Radamés, que inteligentemente olhou e cruzou rasteiro para o meio da área, de onde saiu o petardo fatal: gol do Gonçalense, sol na cara, sorriso no rosto e esperança aflita. “Quem fez nosso gol?”, perguntou-me um torcedor atrasado, e eu não soube dizer. Aquele gol tinha sido de todos nós, de todos os séculos, de todas as ruas sem asfalto, lâmpadas de postes queimadas e horas de translado proletário.

O resto do jogo foi puro sofrimento, e a vitória se fez, finalmente, nas mãos do grande arqueiro Júlio Cesar, que em mais um sopro cardíaco defendeu uma penalidade diabólica já no final da segunda etapa. Daí, foi só esperar, e ver cair mais um “pequeno-grande” time do Rio de Janeiro sob as chuteiras do Gonçalense.

Quem fez o gol da vitória? Eu, você, Dona Maria e Seu Jaime, todos empurrando com suor aquele chute do Beto. “PSG da roça”? Prazer, somos nós.


Gonçalense 1 x 0 América, 10/04/15

domingo, 5 de abril de 2015

Mesmo um relógio quebrado


Sempre fui arrogante. Um efeito colateral compreensível quando se cresce ignorado e a necessidade de cavar seu lugar no mundo se faz imperiosa, passando pela busca incessante da excelência. Cheguei à idade adulta ainda portando tal chaga, mas tive o privilégio de ser escolhido por uma profissão nobre desde os tempos imemoriais, a de xátria, soldado. Servindo à Marinha, fui obrigado a conviver com os mais variados tipos de seres humanos, excelentes cada um em seu pequeno universo particular. E lá, rompendo os pélagos, após um episódio de altivez desmedida e verborrágica (desses ainda tenho, allors), um cara que se tornou um grande amigo (brother in arms) me disse a seguinte frase: “Não subestime ninguém, nunca. Até mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia”.

Ah, o poder das pequenas epifanias. Frases como essa sempre me atingiram em cheio, com o impacto de doze cintras e um prato de calabresa. A partir daí, iniciei uma peregrinação pelas sendas do amor incondicional pelo ser humano. Quebrado, imperfeito, sublime mesmo em seus defeitos. Por que iniciei essa crônica – que é pra ser sobre futebol, meu editor é implacável com minhas digressões – falando isso? Ah, tá, lembrei.

Nós, amantes do futebol, crescemos acostumados ao estereótipo do jogador burro. Desde as piadas do “Ah, a gente fazemos o que podemos (sic)”, até as lendas de Nunes e o presidente corintiano Vicente Matheus. O que se espera do atleta é que corra, marque e faça gol, não filosofia. Daí um dia, assistindo a mais um embate do Mais Querido, o zagueiro Samir, garoto bom de bola, é abordado pelo repórter televisivo após o jogo e diz, na minha cara, na minha sala: “Eu tenho que fazer o meu melhor, independente do adversário. Afinal, esta é a minha profissão, é dela que tiro o meu sustento e o de minha família, não posso fazer diferente”.

Chorei com um ninja silencioso. Nada de jogadores com bagagem de leitura (como o também zagueiro Wallace, que em breve abrirá um blog com resenhas literárias), ou diplomas acadêmicos (DOUTOR Sócrates, que nunca seja esquecido!), mas as palavras simples e contundentes de um menino que finalmente vê seu sonho se materializar em grama. Trabalhamos todos os dias ao lado de pessoas frustradas (a frustração tem mais pouso que a felicidade no ser humano hodierno), que descontam em tudo e em todos. O homem ocidental não consegue associar o trabalho à vida, parece que a vida dá pause enquanto se labora (o oriental destoa lindamente dessa praxis), e em um país como o nosso, de tradição escravagista, é ainda pior: achamos que o trabalho é sofrimento, coisa de seres “menores”, indignos. Daí um ZAGUEIRO de futebol mete a cara na TV e te ensina: você tira teu sustento dali, e tem que fazer o seu melhor. Não há opção. Não interessa se o patrão não gosta de você, se aquilo que você faz passa longe do que você sonhou. O pão da tua mesa sai daí, e se não gosta, saia também. Não abrace a mediocridade. Se até mesmo um zagueiro de futebol – promissor até, mas nenhum craque ainda – consegue ver isso, você também pode.

Imediatamente ,linkei essa epifania com outra, quando vi um adesivo no cockpit de um ônibus que dizia: “Sua meta é ser o melhor no que faz. Não há alternativas”. Aquele motorista não queria ser um engenheiro, ou um corretor de seguros. Queria ser o melhor MOTORISTA, porque é disso que ele vive. Samir quer ser o melhor zagueiro, representar a seleção, ser campeão do mundo. Quem não quer? Mas ele joga – e joga mesmo, o danado – cada jogo como se fosse único, dando o seu melhor.


E você? 


* Galera que está vindo aqui porque o próprio Samir compartilhou o texto em seu facebook (Obrigado, meu caro, e boa sorte no novo time!), aproveita e clica pra ler outros contos no blog. A casa agradece. :)